Quadras dos onze infelizes

Memórias de um caso de polícia

Versos sobre um caso relacionado com uma bouça que havia na zona da atual Escola Básica D. Pedro IV, em Mindelo, que levou várias pessoas à prisão em 1946, em Vila do Conde. Há pelo menos duas versões do mesmo texto: um caderno com os versos vem identificado com o nome de Américo Pereira da Costa, um dos condenados, conhecido também como «ceguinho»; umas folhas com os mesmos versos, mas com ortografia diferente, vem assinada por António José de Oliveira, outro condenado. Os prisioneiros descrevem-se, nos versos, como «onze infelizes». Mantém-se a ortografia original na cópia aqui feita a partir da versão de Américo Pereira da Costa, mas alguns nomes foram omitidos. A versão digitalizada é a de António José de Oliveira.

• Proveniência: Paulo Silva (versão de Américo Pereira da Costa)
• Direitos: InC

1.ª Parte • 2.ª Parte • Versão de António José de Oliveira

1.ª Parte

1.º

Nestes dias de amargura,
E netas selas da prisão,
Emcontram-se ônze infelizes,
Fora os outros que cá não estão.

2.º

Ao olhar para aquelas grades,
Faz arrepiar o cabêlo,
A estes ônze camaradas,
Que são tôdos de Mindelo.

3.º

Vamos expôr nossa vida,
Têmos tempo e vagar,
Para ficar na memoria,
O que estamos a passar.

4.º

Vamos contar isto a eito,
Do principio ate ao fim,
Meus senhores tomem sentido,
O caso passou- assim.

5.º

Há em Mindelo uma Bôuça,
Do padre da Freguezia,
E êle faleceu sem declarar,
A quem ela pertençia.

6.º

Passou-se um ano e dões,
Passaram-se quatro e seis,
Não estamos a exagerar,
Vós pôvo bem o sabeis.

António José de Oliveira.pdf

Versão de António José de Oliveira
1946

• Proveniência: Maria Gonçalves de Oliveira
• Direitos: InC

2.ª Parte

7.º

Nunca ninguem lhe tocou,
Tôdos guardaram respeito,
Só apenas um atrevido,
Eu digo-vos quem e o sugieto

8.º

O matagal cresceu,
Silvas e ervas danínhas,
Pegou a criar Rapôsas
Que ate comeram Galinhas.

9.º

Tudo isto é verdade,
Chegou a vista de tôdos
Já havia quem disesse
Que tinham visto lá Lôbos

10.º

Não sei lá porque maneira
Um incendio a devorou,
Esse mato ardeu tôdo,
E ninguem disso se emportou.

11.º

Havia lá um fulano,
Chamado Manuel P. [omitido],
Que a muito trazia lenha
E tambem feixes de mato.

12.º

Como ninguem fasia caso
Nem do fogo se emportou,
Pegaram uns a ir à lenha,
E dizem os outros, eu tambem vou.

13.º

O c. [omitido] vendo aquilo,
Ficou todo atrapalhado,
Ai la vai o mêu frascal,
E eu fico desgraçado.

14.º

Com raiva de não ser só dêle,
Acusou-nos ao A. [omitido],
Para ser bem esclarecido,
Isto começou assim.

15.º

De Mindelo a Maçieira,
Ele fazia um carreiro,
Tinha mais entresse nisso
Do que mais nenhum herdeiro.

16.ºOs herdeiros lhe disiam,
Isso a nós não nos entressa
Ele voltava para Mindelo,
A corrêr a toda a pressa.

17.ºQue se havia de lembrar
Para vêr se consseguia
A pôr os herdeiros fora
E parar com aquilo um dia

18.ºLevantou um falso testemunho
Ao Manuel C. [omitido]
Que foi lá roubar um carvalho.
Vêde do que êle é capáz

19.ºMas o Manuel C. [omitido]
Assim lhe pôs o pé no rabo
Fê-lo ingulir a fráse
Isso e que foi o diabo

20.ºErgueu um processo sôbre êle
Não lhe saiu como nós
Levou para o Tribunal
Aquêle bicho feróz

21.ºObrigaram o A. [omitido],
A meter-se na meada,
E para cumprir as leis,
Uma busca foi passada

22.ºA meados do mez de Março
De mil novecentos e quarenta e seis
Que foi passada êssa busca
Vós todos bem o sabeis

23.ºO sinhor padre vinte e seis,
Que do outro queria ser herdeiro,
Foi acusar o B. [omitido],
E A. [omitido] do Ferreiro.

24.ºTambem acusou o A. [omitido],
E a Marcelino F. [omitido],
E a Maria F. [omitido],
E o Manuel C. [omitido].

25.ºAcusou o Antonio do A. [omitido],
E o Carlos da L. [omitido]
E a Albina C. [omitido]
E também a Clementina

26.ºAcusou o Americo V. [omitido],
O Antonio M. [omitido],
E o Manuel do N. [omitido],
E o Carlos M. [omitido].

27.ºPor pouco ia acusar
A freguesia inteira
Acusou o Antonio da A. [omitido]
E o Albino P. [omitido]

28.ºE tambem foi acusar
Aquêle grande aldrabão
O Manuel da E. [omitido]
E o Antonio B. [omitido]

29.ºAcusou o Bernardino P. [omitido],
E o Bernardino do R. [omitido],
E ainda acusaria mais
Ate qui são os que eu sei

30.ºMas não disse que em casa dêle
Que tinha a maior porção
Que carregava a vontade
Um grandecissimo vagão

31.ºLevou bem mais do que nós
E mentiu bem descarado
Logo no dia da busca
Ao Sr. Dr. Delegado

32.ºMas não ficou por ai
A mentir foi mais alem
Em pleno Tribunal
Mentiu a gente de bem

33.ºFômos então intimados
A comparecêr no Tribunal
Para faser a comfissão
Veio tudo em geral

34.ºAlguns foram mais felizes
Ou tiveram habilidade
Porque ficaram de lado
Não chigaram a infelicidade

35.ºE nós ônze que dissemos
Como tudo foi passado
O que trouxemos de lá
Ficou tudo bem declarado

36.ºDepois passado algum tempo
Viemos de nôvo ao Tribunal
Para ver a nossa sorte
E emfim calhou nos mal

37.ºPelas fracas informações
Do queixôso e do Louvado
Fômos condenados pelo Juiz
E sofrêmos bom bocado

38.ºQuando foi lida a sentença
E nós de pé firme a ouvir
Quinze dias de cadeia
Sôbre nós veio cair

39.ºAceitamos de bôa vontade
Respeitando o Tribunal
E de alegria o C. [omitido]
Deu um salto de pardal.

40.ºA assistençia do Tribunal
Sentiu imenssa paixão
Ao vêr ônze chefes de familia
Marcharem para a prisão.

41.ºE o povo de Vila do Conde,
Ate ficou horrorôso,
Dizem que nunca la apareceu
Assim tão barbaro queixôso

42.ºE a Freguesia de Mindelo
Cubriu-se tôda de luto
Por vêr tanta gente prêsa
Acusados por um bruto.

43.ºEntão as nossas esposas,
Cortavam o coração,
Nossos filhos pais e mães
Ao vêr-nos ir para a prisão

44.ºFoi em vinte e trez de Maio
Que fômos para a prisão
Não tinha camas para tôdos
Dormiram alguns no chão

45.ºLá dentro daquelas grades
Passaram-se os quinze dias
Pareceram-nos quinze anos
Esse tempo de agonias

46.ºDe noite só vendo paredes
Tagarelava-nos juntos
Quando rompia a aurora
Pareciamos uns defuntos

47.ºNunca na vida passamos
Por tão horrivel traição
Estes dias passados
Feriu-nos o coração

48.ºNosso coração sencivel
Bondôso e de dignidade
Ficou todo despedeçado
Não olhando a idade

49.ºNovos e velhos sofrêram
A dita e horrivel traição
Irmãos nossos e toda a familia
Irritaram o sêu coração

50.ºIrritaram sêu coração
Compadecidos de nós
Só não se compadeceu
Aquêle farnetico algôz

51.ºO gente da Freguezia
Se e que tendes coração
Pedi a Deus por nós tôdos
Que sofrêmos na prisão

52.ºNós sofrêmos na prisão
E vós tôdos em liberdade
Meteram-nos na cadeia
E não olharam a idade

53.ºVêde bem que abessurdo
Fizeram nêste caminho
Que nem se compadecêram
Daquêle pobre ceguinho

54.ºAquêle pobre ceguinho
Eles bem sabiam que o era
Nunca tal coisa se viu
Nos dias da nossa Era

55.ºFômos la bem recebidos
Pelo Snr Carçereiro
E por todo o pessoal
Que estava priosioneiro

56.ºNós têmos agradecer
Ao Snr Carçereiro
Que por tudo que nos fêz
Em nada aceitou dinheiro

57.ºEmquanto estivemos prêsos
Fômos muito visitados
Por familias e por amigos
Dos nossos maiores agrados

58.ºAs noites eram imenssas
Os dias não mais passavam
Visitando-nos os amigos
Ao irem embora choravam

59.ºComo não tinha-nos que fazer
Que nos havia de lembrar
Narrar-mos a a nossa historia
Para nunca la mais voltar

60.ºCompleta a nossa pêna
Com socego e humildade
Dissemos adeus a cadeia
E a toda a sociedade

61.ºAdeus Snr Carçereiro
E sua esposa tambem
Sua mãe e seus filhinhos
Que é tudo gente de bem

62.ºDissemos adeus aos prêsos
Que ficaram comovidos
E pelo caso contado
Tinham sido surpreêndidos

63.ºAdeus ó Vila do Cônde
Aônde quinze dias foram passados
Que ate por gente de la
Nós fômos bem visitados

64.ºE ao passarmos a ponte
Já nem olhamos para tráz
Não querêmos penssar mais nisso
Para estar-mos sempre em páz

65.ºA nossa chegada a Mindelo
Foi muito bem festejada
Se nos apareçia o C. [omitido]
Ficava toda empancada

66.ºAgora vamos dar principio
Da que foi nossa chegada
Ao C. [omitido] e a familia
Para não ficarem sem nada

67.ºQuem nos ensinou o caminho
A fazer-nos tal ação
Foi o Manuel P. [omitido]
O homem da loucação

68.ºNós emfim vêndo aquilo
De gente religiosa
Seguimos os mêsmos passos
Que a coisa estava geitosa

69.ºComo era-mos visinhos
E via-nos aquêle trabalho
Tambem fômos buscar lenha
De pinheiro, e de carvalho

70.ºEra coisa que precisava-mos
Para conssumo das nossas casas
Ele então encheu-se de raiva
Tratou de nos cortar as báses

71.ºFoi a casa dos herdeiros
Contar o que se passava
Com aumento de noventa por cento
Para encobrir o que tenho em casa

72.ºE lá isso foi feliz
Que as coisas correram lhe bem
Que nós ficamos por gatunos
Em Mindelo e por aí alem

73.ºEle então ficou por serio
Na boca do A. [omitido]
Mas na nossa freguezia
Ja não é tanto assim

74.ºA Bouça se é dos herdeiros
Do falecido Padre
Os herdeiros são bastantes
E a maior parte bem o sabe

75.ºEle que tem um Castanheiro
Que la foi buscar num carro
Pinheiros e Eucaliptos
E lenha por todo o lado

76.ºMal se pode mexer
La dentro daquelas portas
E ja queima a oito anos
Lenha que de la trouxe às costas

77.ºE com respeito ao Carvalho
Disse que o C. [omitido] o tinha
Mas êle queria para êle
Para uma trave para a cosinha

78.ºFoi dizer que tinha cem toneladas
Em casa dêstes fulanos
E nós só tinha-nos canhotos
Algumas pontas e ganos

79.ºO pêso da nossa lenha
Deve ter dêz toneladas
E nós estamos a cumprir a pêna
Das cem que foram indicadas

80.ºAo Snr Doutor Juiz
Não temos culpa a tornar
E a quem o informõu
Sem pena de se salvar

81.ºPorque se é como dizem
Depois dêste mundo do que a outro
Eles teem que prestar côntas
Que Deus vê e não e mõuco

82.ºSe Deus não dorme e vê tudo
A desgraçado c. [omitido]
Que nas prufundas do inferno
Vais ficar esmirrado e sêco

83.ºQue é que andas tu a faser
Ahi ajudar a missa
Grande pulha e intrujão
Põe uma máscara postiça

84.ºE preciso desviar-te
Da Egreja la da terra
Assim que nós para ai fôrmos
Vai ficar tudo em guerra

85.ºAs pessôuas que não sabem
Mas ao ouvirem contar
Não dão mais aparamentos
Ao c. [omitido] a guardar

86.ºNão pudemos consentir
Que na visita Pascal
Vá visitar nossas casas
Homem que faz tanto mal

87.ºE preciso desviá-lo
Da santa religião
Pois não se pode imcobrir
Semelhante aldravão.

88.ºE diz que e nosso amigo
Para vêr se fica bem
Mas vamos mostrar à freguezia
O sacristão que ela tem

89.ºO que fêz a bouça do Padre
Pode fazer a Egreja
Levando de lá as alfaias
E o mais que êle deseja

90.ºE culpara gente honrrada
Que são cristãos a valer
Mas que acompanham com êle
Por ainda o não conhecer

91.ºMas amanhá vendo isto
Ele ficará de parte
Pois la dentro da Egreja
Não se quer daquela arte

92.ºViveis só de intrujisses
A intrujar quem tem muito
A trôco de arregaçadas
De Batatas e Presunto

93.ºPrincipia pelo c. [omitido]
E acaba na L. [omitido]
Quem se não puzer a pau
Ate fica sem camisa

94.ºQuando chega um fidalguinho
Do Porto ou do Brasil
Sercam uns de cada lado
Anzonices são ás mil

95.ºQuando esta alguem duente
Rodeiam logo a porta
São como a Curuja e o Môcho
Que arremedam gente morta

96.ºQuando morre um lavrador
Aonde tiver que chupar
Vão uns alumiar os santos
E outros talhar o ar

97.ºPadres Nossos a tostão
Avé Marias a cruzado
Começam a porta do falecido
E acabam a entrar no Adro

98.ºO cemiterio está a sêr campo
Das ovelhas das P. [omitido]
Quando fôr daqui a pouco
Ate la plantam batatas

99.ºTem muitos modos de vida
E sacristão e sineiro
Para completar o resto
Só lhe falta ser coveiro

100.ºMas para isso não serve
Porque ao abrir o buraco
Se calha de estar com a rôsca
Adeus Manuel P. [omitido]

101.ºE para não esquecer
Tambem o Snr queixôso
Que apareceu no Tribunal
Com seu bigode raivôso

102.ºDisse trinta por uma linha,
Cuarenta por um novêlo
Ao primeiro que não conheçia
A tal bouça de Mindelo

103.ºAo primeiro que não conheçia
E depois ja conhecia bem
Que tinha oito mil metros quadrados
E ela nem cinco tem

104.ºDiz que não lhe dava o Sol
Devido a ter muita madeira
Que lhe roubaram cem toneladas
Vede bem que grande asneira

105.ºE tambem não conhecia
Que metade era de lavrar
Disse que era tudo Pinheiros
E que os foram lá roubar

106.ºE assim se prepararam
A intrujar ó Juiz
Sem consçiênçia ninhuma
Ele mentiu quanto quis

107.ºE nós reus que não tivemos,
Ninguem a nosso favor,
Nem ninhuma testemunha
Nem o Snr Regedôr

108.ºA calcular toneladas
De cada cem fiseram mil
Carregaram-nos ao maximo
Dizeram lei de funil

109.ºSe êles tivessem poder
De nos darem o castigo
Apanhavamos pena maior
Vinte e oito anos de abrigo

110.ºMas o Snr Doutor Juiz
Homem direito e conhecedôr
Ainda lhe cortou as bases
Ao queixôso e ao Regedôr

111.ºDisse que não havia cambio nêgro
Que executava a tabela
Mas cingiu-se as 100 toneladas
E nem vinte sairam dela

112.ºE sem mais comclusões
Vamos dar por acabado
Pedimos desculpa a todos
Mas temos o cerebro canssado

Se este livro foi achado
Decerto que foi perdido
Leva o nome da pessôua
Para ser restituidoAmerico Pereira da CostaMindelo
Vila do CondeCadeia da Comarca de Vila do CôndeEm 1946

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1946